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Dilemas e Dificuldades para a Aplicação da Medida Provisória 926

A Medida Provisória 926 de vinte de março de 2020 trouxe impactantes alterações nos procedimentos licitatórios, mais especificamente na ampliação das hipóteses da dispensa desse procedimento. Essas alterações, por certo, trarão muitas e profundas dúvidas aos gestores, infelizmente, exatamente àqueles que estarão à frente do importante desafio do enfrentamento às situações emergenciais trazidas pelo coronavírus.

De pronto, cabe dizer, esta Medida Provisória altera a ainda recentíssima Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que trouxe, mais amplamente, as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da terrível pandemia.

A Medida, que ora trataremos, altera aquela Lei, mais especificamente o artigo 4º, que versa sobre os procedimentos para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública relativa ao coronavírus, trazendo a possibilidade de dispensa da licitação.

Feita essa ligeira introdução, cabe mencionar que a Lei e sua consectária Medida Provisória, que lhe altera, podem ser consideradas legislações extravagantes.

Dizemos isso porquanto a legislação citada não trouxe alterações à Lei de Licitações, por assim dizer, o Código que rege totalmente os contornos relativos às licitações. Trouxe, sim, um regramento próprio e específico. A propósito, demonstrando o seu total descolamento, a Medida Provisória cita aquela Lei em apenas rápida passagem.

Um primeiro ponto a ser abordado, quanto à sua amplitude, seria a possibilidade de aplicação dessa Medida no âmbito das esferas estadual e municipal, eis que, a competência privativa da União – artigo 22, inciso XXVII, da Constituição Federal, vincula-se à edição de normas gerais, e, de fato, não estamos aqui à frente de norma desse jaez.

Por outro lado, vale lembrar que a própria Lei das Licitações, em seu artigo 24, inciso IV, prevê a contratação, com dispensa de licitação, em situação emergencial ou de calamidade pública.

IV – nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos;

A respeito do conceito de emergência inserido neste dispositivo, Marçal Justen Filho leciona:

“No caso específico das contratações diretas, emergência significa necessidade de atendimento imediato a certos interesses. Demora em realizar a prestação produziria risco de sacrifício de valores tutelados pelo ordenamento jurídico. Como a licitação pressupõe certa demora para seu trâmite, submeter a contratação ao processo licitatório propiciaria a concretização do sacrifício a esses valores”.

Como se vê, já havia base legal para a contratação com dispensa de licitação em situações de calamidade pública, e com razoável celeridade, mas, evidentemente, seguindo alguns requisitos formais, agora afastados pela Medida Provisória, para específico atendimento às circunstâncias nela previstas.

A propósito, esclarecia o mesmo reconhecido doutrinador, em interessante passagem, que em tudo se coaduna com o momento atual: “a contratação direta exige um procedimento prévio, em que a observância de etapas e formalidades é imprescindível. Somente em hipóteses-limite é que a Administração estaria autorizada a contratar sem o cumprimento dessas formalidades. Seriam aqueles casos de emergência tão grave que a demora, embora mínima, pusesse em risco a satisfação dos valores, a cuja realização se orienta a atividade administrativa”. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 13ª edição, pág. 283.

Uma questão preliminar sobressalta: Já não tínhamos um arcabouço legal, com apoio na doutrina, para o enfrentamento dessa evidente e devastadora crise social e econômica? Não estaríamos claramente vivenciando essa hipótese-limite, aventada pela doutrina?

Apesar desse quadro e das dúvidas vestibulares, não acreditamos ter sido a Medida inteiramente dispensável. No mínimo, tenta trazer necessária tranquilidade aos gestores que se encontram premidos a ação rápida e eficaz, no necessário atendimento aos reclamos de uma crise evidente.

Todavia, por ser norma de efeitos temporários, pois aplica-se apenas enquanto perdurar a emergência de saúde pública, não teve a preocupação de fazer uma efetiva inserção ou mesmo alteração à Lei das Licitações, trazendo tão somente os procedimentos relativos às dispensas licitatórias para melhor enfrentamento da pandemia, por parte dos órgãos e entidades públicas, no nosso entendimento, federais.

Tal circunstância, trará inexoravelmente dificuldades à sua aplicação, pois não está inserida num arcabouço legal, como se configura a Lei 8.666/93, já amplamente estudado e debatido doutrinariamente e com razoável pacificação jurisprudencial, notadamente pelo Tribunal de Contas da União.

Aponta para essa constatação, de pronto, uma primeira questão que emerge de uma rápida análise da MP, relativa à sua publicidade: Qual seria o “sítio oficial específico” da internet, como ali é dito, diante das diversas naturezas jurídicas e situações organizacionais dos órgãos e entidades envolvidas nas possibilidades dessas contratações? Um erro dessa natureza poderá ser fatal, atingindo em cheio o princípio constitucional da publicidade.

Avançando, diz o texto da norma que, excepcionalmente, será possível a contratação de empresas que estejam com inidoneidade declarada, quando se tratar, comprovadamente, de única fornecedora.

Preliminarmente, vale anotar que talvez aqui estejamos à frente de uma hipótese não de dispensa, com viu a norma, mas, sim, de inexigibilidade, porquanto evidente, neste caso, a ausência de um mercado concorrencial, pressuposto para adoção da inexigibilidade.

Tal procedimento, nada obstante, para ser bem fundamentado e alcançar a comprovação exigida, toma tempo, o que pode afastar a necessária agilidade para o enfrentamento da emergência, que, por sua vez, é premissa e fundamento para a adoção dessa “dispensa”.

Além disso, essa possibilidade, bom de ver, não é salvo conduto para contratações desastrosas e, a par disso, que levem a valores superfaturados. Mais vale esse alerta, quando a própria norma abre a possibilidade de, mesmo quando os preços obtidos a partir da estimativa de preços sejam superiores, “decorrentes de oscilações ocasionadas pela variação de preços”, isso não impediria a contratação.

Necessário lembrar, nesse contexto, que o §2º do artigo 25, da Lei das Licitações, fatalmente a ser utilizado em eventuais deslizes em procedimentos pautados por essa MP, diz que, tanto no caso de dispensa como de inexigibilidade, “se comprovado o superfaturamento, respondem solidariamente pelo dano causado à fazenda pública o fornecedor ou prestador de serviços e o agente público responsável, sem prejuízo de outras sanções legais cabíveis”.

Outra melindrosa construção trazida pela norma, refere-se à não exigência da elaboração de estudos preliminares, quando se tratar de bens e serviços comuns. Além disso, admite-se a apresentação de termo de referência ou de projeto básico simplificados. E mais, o gerenciamento de riscos somente será exigível durante a gestão do contrato.

Todo esse quadro revela-se, no que poderíamos resumir, num perigoso “voo cego” que o gestor poderá alçar, mas, com previsível possibilidade de turbulência, não só no período da execução do contrato, mas, especialmente, após essa fase.

Por fim, nessa rápida análise, que poderia ser estendida a vários outros aspectos, inclusive ao artigo 4º F, um prato cheio neste sentido, e mesmo no tocante às questões constitucionais, atemo-nos agora à movediça “presunção” do atendimento as condições, estabelecidas na própria Medida Provisória, base para caracterização da dispensa.

A norma diz ser necessária estar caracterizada essa “presunção”, a necessidade do atendimento de certas condições: i) como a ocorrência da emergência; ii) a necessidade de seu pronto atendimento e iii) a existência de riscos, neste caso, bem amplos, e, ainda, a obrigação da contratação ser limitada à parcela necessária ao atendimento daquela situação, o que neste caso, não seria uma propriamente uma condição.

Com esse emolduramento, em nossa avaliação, não será tarefa fácil alcançar, com razoável grau de certeza, essa “presunção”, eis que, manejará o gestor frágeis instrumentais para esse fim, como já abordado, haja vista não serem exigidos os estudos preliminares, e o termo de referência ou projeto simplificado serão “simplificados” e, o mais preocupante, quando o gerenciamento de riscos será feito somente na execução do contrato.

Alfim, diante dessas rápidas e superficiais questões aqui tratadas, fácil concluir, desafortunadamente, que o nosso ‘gestor médio’, mesmo embalado de boas intenções, para bem cumprir suas funções necessárias ao enfrentamento dessa terrível pandemia, certamente terá muitas dificuldades para levar a bom termo a dispensa de licitação prevista na Medida Provisória 926 de vinte de março de 2020, da forma como foi apresentada.

Muitos equívocos por certo serão perpetrados, e, pós crise, a permanecer este quadro, serão necessárias muita compreensão e boa vontade por parte dos órgãos de controle.

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